3.11.05

Ela se casa hoje

Ela se casa hoje. As coisas vão acontecendo, as pessoas vão mudando, evoluindo, involuindo, se agrupando, trabalhando, tendo problemas, grandes alegrias e eu vejo tudo como espectadora. Talvez essas mudanças ocorram também comigo, mas não as percebo tão nitidamente. O que acontece é que algumas coisas marcam, chacoalham o nosso mundinho. Como ela estar se casando hoje.

Minha prima, amiga de infância. No passado dividiu essa 'categoria' com outra prima/amiga. Uma tinha ciúmes da outra. Eu, a prima querida por ambas. Posição confortável. Hoje, a outra continua prima, é evidente, e cada vez mais amiga. Mas ela, que se casa hoje, agora é só prima.

É alguns poucos anos mais velha. Dois ou três, não sei bem, quase sempre esquecidos. Uma das poucas questões em que a idade fez a diferença foi no assunto Papai Noel. Ela sabia que ele não existia, eu não. Não me contou porque eu ainda era muito nova. Simulou, por um par de anos, a mesma ansiedade que eu durante a espera pelo generoso velhinho.

Foram anos de férias passadas juntas. Brincadeiras inocentes, brincadeiras de mau-gosto, brincadeiras perigosas, de todos os tipos. Taca a maçã na cabeça do pedestre! Risos, se esconde atrás da cortina! Faz bagunça! Culpa da empregada! E tome bronca na mineira, recém chegada. Sentimento de culpa, sapatinho de cristal, brinde de alguma festa que guardei, para me desculpar. Investiga a vida alheia! 'Ele tem outra'! Telefonemas, telefonemas. 'Crianças, parem com isso. Sei onde você mora, conheço sua mãe, ela vai ficar sabendo.' Paramos. Brincar de casinha, de enterro, video-game, coreografias mil. Quebra isso, quebra aquilo, a culpa é sempre minha, estou na minha casa, você é visita, deixa comigo, eu assumo. Bronca. Teatrinho, risos, brigas. Briga briga. 'Isso não tá dando certo, elas estão brigando demais'. Noite chuvosa: 'Mãe, quero ir embora pra casa, vem me buscar'. E nesse ano as férias em comum acabaram mais cedo.

De repente, ela tinha uma religião. Uma religião que, para nossa relação, só serviu como combustível para novas discussões:
- Não, você não é cristã, só eu sou!
- Hein?!
- É isso mesmo, basta ler na bíblia, em Marcos, capítulo x, versículo y que ele diz...
- Mas cristão não é quem acredita em Cristo? Então como é que eu não sou?
- Porque você adora falsas imagens. Santos não existem! Você faz tudo errado!
- Ah, ok. Eu NÃO vou discutir com você...
Lavagem cerebral, foi o que pensei na época. Mas ela cresceu e a intolerância, ao que parece, não está mais lá.

Os anos passaram, as diferenças foram ficando mais evidentes, a amizade não resistiu. Não brigamos, não deixamos de nos gostar. Apenas nos deixamos. Os contatos cada vez mais raros, apenas em reuniões de família. Dia desses, em uma dessas ocasiões, passamos horas e horas juntas, o que já não fazíamos há muito tempo. Conversamos, soube um pouco do que se passa na vida dela. E ela da minha. Rimos, relembramos o passado. Ela disse que sempre se aproveitou do fato de ser mais velha. Colocava toda a culpa em mim, eu sempre estava errada, ela sempre fazia como quem sabia de tudo. É verdade. Era impressionante como ela sempre acabava tendo razão. A revelação, em meio a risos, tirou o peso de todas aquelas brigas do passado. Não que houvesse mágoa, mas foi bom saber que eu tinha alguma razão. Interessante. Mudou sensivelmente a forma com que agora vejo a nossa amizade.

Vou casar, disse ela. Eu já sabia. Me convidou para ser madrinha, de um jeito meio estabanado:
- Ah, quero que seja alguém da família, pode ser você ou sua irmã, tanto faz.
- A irmã não pode, tem trabalho no dia.
- Ah, então vai você mesmo.

Tudo bem, aceitei. Mal conheço o noivo, a relação dos dois, como se conheceram, as brigas, as afinidades, nada, nada disso. Mas estarei lá, como madrinha de uma união que praticamente desconheço. Gosto dela, sempre gostei, que sejam felizes.
E tudo isso acontece hoje. Hoje ela se casa. À partir disso ela será a prima casada. A prima mais velha, agora sim. As diferenças se aprofundarão. Em pouco tempo filhos, outros assuntos, envelhecimento, a infância cada vez mais distante. O tempo passa.
A brincadeira de casinha, agora, será diária.