4.11.05

Tic-tac

Ele passa, olhando o relógio, nervoso. Olha para as pessoas de rabo de olho, desconfiado. Sim, desconfia de todas, todas elas. Em compensação, elas parecem tão preocupadas com seus compromissos, prazos e horários que nem notam o desconhecido que está à espreita. Ele mesmo. Não disfarça sua esquisitice. Estava tendo o que se poderia chamar de um comportamento suspeito exemplar. Suava muito, e nem fazia tanto calor assim. Andava rapidamente, parava no meio do caminho, olhava para trás, voltava. Mudava de idéia e invertia mais uma vez seu caminho. Seu olhar não se fixava em ninguém, mas parecia lançar fagulhas de raiva e desprezo para todos os que cruzavam seu caminho. Teria medo se olhasse para si mesmo naquele momento. E essa era mesmo a sua intenção.
Sim, faltava pouco tempo agora. Ninguém poderia imaginar o que estava prestes a acontecer. Claro, claro que não. Isso porque ninguém enxerga um palmo além do próprio umbigo. É, mas em poucos minutos isso ia mudar. Olhou para o relógio mais uma vez. Achou prudente se afastar um pouco mais.
'Eu prestaria mais atenção ao redor, se fosse você', pensou ele, se concentrando na menina da blusa amarela. Ah, sim, não entendia o porquê de tanta pressa. Antes que acabasse de atravessar a passarela tudo estaria acabado. Não olhou para mim, a maldita. Claro que não. Eu não estou de amarelo. Não, estou de calça preta surrada, rasgada, blusa branca encardida, chinelos! Não é possível que ninguém perceba. Será que é porque não sou preto? Mas e os chinelos quase rasgando, arrastando no chão? Isso é muito mais chamativo que a sua blusa amarela. Mas não foi o suficiente para você olhar para mim, não é? Não que seu olhar fosse mudar alguma coisa. Porque agora já estava decidido, a coisa toda estava feita.
Não ia se importar mais com o que os outros iriam pensar, não senhor. Ninguém nunca se importou com o que ele pensava sobre tudo aquilo que acontecia ao seu redor. Ora, vejam só, ele estava incorporado a algo que não concordava. Quer violência maior que essa? Definitivamente, tudo aquilo que estava muito errado. Todos, todo mundo errado. E ninguém mais importava para ele. Nem a menina da blusa amarela, nem o vendedor de óculos que chega às 8 da manhã, monta sua barraquinha e fica ali, torrando no sol, até que a tarde venha e amenize um pouco o calor. E depois, somente quando a noite cai, ele desmonta tudo, desce novamente a passarela, pega a primeira das três conduções que o levam de volta para casa. Mas o que tinha ele com a vida do vendedor? Nada. Ele até poderia ser poupado. Mas, assim como todos os outros, nada percebeu. Depois de todo seu esforço. Por isso, merecia o que havia de vir.
Planejou tudo. Há tempos vinha com essa idéia fixa. Em um primeiro momento, quando a idéia surgiu em sua mente, pensou ser impossível. E era mesmo. Até decidir que podia fazer também isso ao seu jeito. Ia satisfazer unicamente aos seus desejos, pouco importava todo o resto. Armou, então, todo o cenário, e estava prestes a assistir, de camarote, o apoteótico desfecho.
Poucos segundos agora o distanciavam do grande momento.
Olhou o relógio uma última vez. 3, 2, 1.

Silêncio.

Parado, olhos fechados, um sorriso, inicialmente tímido, se insinuou em sua boca. Depois, tornou-se largo, sonoro, gargalhada. Suava mais, cada vez mais. Sentiu um esbarrão. Uma sombra na sua alegria. Mas ele não se deixaria abalar. 'Acalme-se. Deu tudo certo, sim. Do meu jeito'. Caminhou os primeiros passos ainda com os olhos fechados. Não olhou para trás.