Uma ponte
Foi caminhando lentamente, no escuro, naquele lugar que não conhecia. Ouvia histórias de sua infância, contadas com precisão de detalhes pela amiga distante, esquecida. Infância parcialmente passada ali, naquele ambiente agora quase completamente estranho a ela. Sentia imenso carinho pelas recordações das quais não mais se lembrava. Era sempre feliz nesses momentos, mesmo que não o tivesse sido.
Continuava seguindo pela ponte sem iluminação, uma ponte partida, assim como suas memórias. Uma ponte que não dava para lugar algum, uma ponte que chegava até certo ponto do mar e só. Não tinha um destino, um ponto final, somente as ruínas do que foi um dia. Já era noite, nada podia ver a não ser o pisca pisca hipnótico dos vaga-lumes. Já não os via há muitos anos. 'Cuidado que aqui fica cheio de caranguejos, não vá pisar em nenhum', advertiu a amiga mais familiarizada com o local. 'Os vaga-lumes também, tem alguns muito próximos do chão, cuidado'. Sim, muito cuidado.
Pelo caminho, a parca iluminação não permitia que enxergasse muito do que estava ao redor, mas o que se insinuava frente aos seus olhos interessados já era o suficiente para a fazer desejar ter vivido mais intensamente o seu passado, ali. Desfrutou então, na escuridão, de momentos nunca vividos. Observou o pôr do sol, sentiu o forte cheiro de maresia, ajudou os pescadores com suas enormes redes, pediu carona em um dos precários barcos presos por cordas totalmente cobertas por algas, correu até o limite da ponte, quase caiu e voltou chorando, assustada. Pisou, sem querer, em um caranguejo e nunca esqueceu ou se perdoou. Tirou fotos, muitas fotos, escreveu mais tarde sobre tantos momentos que a marcaram na infância naquela mesma ponte, a praia, os amigos, os vaga-lumes, pescadores, as marés altas e baixas...
***
Pobre velha música!
Não sei por que agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.
Recordo outro ouvir-te,
Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.
Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora.
('Pobre velha música!', Fernando Pessoa)
Continuava seguindo pela ponte sem iluminação, uma ponte partida, assim como suas memórias. Uma ponte que não dava para lugar algum, uma ponte que chegava até certo ponto do mar e só. Não tinha um destino, um ponto final, somente as ruínas do que foi um dia. Já era noite, nada podia ver a não ser o pisca pisca hipnótico dos vaga-lumes. Já não os via há muitos anos. 'Cuidado que aqui fica cheio de caranguejos, não vá pisar em nenhum', advertiu a amiga mais familiarizada com o local. 'Os vaga-lumes também, tem alguns muito próximos do chão, cuidado'. Sim, muito cuidado.
Pelo caminho, a parca iluminação não permitia que enxergasse muito do que estava ao redor, mas o que se insinuava frente aos seus olhos interessados já era o suficiente para a fazer desejar ter vivido mais intensamente o seu passado, ali. Desfrutou então, na escuridão, de momentos nunca vividos. Observou o pôr do sol, sentiu o forte cheiro de maresia, ajudou os pescadores com suas enormes redes, pediu carona em um dos precários barcos presos por cordas totalmente cobertas por algas, correu até o limite da ponte, quase caiu e voltou chorando, assustada. Pisou, sem querer, em um caranguejo e nunca esqueceu ou se perdoou. Tirou fotos, muitas fotos, escreveu mais tarde sobre tantos momentos que a marcaram na infância naquela mesma ponte, a praia, os amigos, os vaga-lumes, pescadores, as marés altas e baixas...
***
Pobre velha música!
Não sei por que agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.
Recordo outro ouvir-te,
Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.
Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora.
('Pobre velha música!', Fernando Pessoa)