18.11.05

Espelho

_ Você não pode continuar assim!
_ Eu sei.
_ Se sabe, porque não faz nada a respeito?!
_ Porque eu não consigo.
_ Não consegue? Vai à merda, cara, você nem tenta, é diferente.
_ E você, faz o que pra me ajudar? Porra nenhuma. A culpa é toda sua. Não é facil, você sabe bem. Não pra gente. Deveria ser, mas não é. Sabe aquela musiquinha de infância: 'Parece fácil... mas é difícil.... Um belo dia, um belo dia aprenderá... Besta!'? Então. Tô esperando esse belo dia até hoje. Por enquanto, ainda me sinto uma grande besta.
_ Você é patético. Tem tudo nas mãos. O que você quer mais?
_ Eu quero não ter mais que olhar para a sua cara. Você só sabe reclamar, mas fica aí paradão, me olhando feito o babaca que você realmente é, e não faz absolutamente nada.
_ Sabe, o seu belo dia não vai chegar, mesmo.
_ Nem o seu.
_ Isso não melhora as coisas.
_ É.

Palavras...

Às vezes eu me pergunto: será que algum dia usarei a palavra taciturno em algum texto meu? Terei categoria para tal?!

Taciturno. Muito bom.

4.11.05

Tic-tac

Ele passa, olhando o relógio, nervoso. Olha para as pessoas de rabo de olho, desconfiado. Sim, desconfia de todas, todas elas. Em compensação, elas parecem tão preocupadas com seus compromissos, prazos e horários que nem notam o desconhecido que está à espreita. Ele mesmo. Não disfarça sua esquisitice. Estava tendo o que se poderia chamar de um comportamento suspeito exemplar. Suava muito, e nem fazia tanto calor assim. Andava rapidamente, parava no meio do caminho, olhava para trás, voltava. Mudava de idéia e invertia mais uma vez seu caminho. Seu olhar não se fixava em ninguém, mas parecia lançar fagulhas de raiva e desprezo para todos os que cruzavam seu caminho. Teria medo se olhasse para si mesmo naquele momento. E essa era mesmo a sua intenção.
Sim, faltava pouco tempo agora. Ninguém poderia imaginar o que estava prestes a acontecer. Claro, claro que não. Isso porque ninguém enxerga um palmo além do próprio umbigo. É, mas em poucos minutos isso ia mudar. Olhou para o relógio mais uma vez. Achou prudente se afastar um pouco mais.
'Eu prestaria mais atenção ao redor, se fosse você', pensou ele, se concentrando na menina da blusa amarela. Ah, sim, não entendia o porquê de tanta pressa. Antes que acabasse de atravessar a passarela tudo estaria acabado. Não olhou para mim, a maldita. Claro que não. Eu não estou de amarelo. Não, estou de calça preta surrada, rasgada, blusa branca encardida, chinelos! Não é possível que ninguém perceba. Será que é porque não sou preto? Mas e os chinelos quase rasgando, arrastando no chão? Isso é muito mais chamativo que a sua blusa amarela. Mas não foi o suficiente para você olhar para mim, não é? Não que seu olhar fosse mudar alguma coisa. Porque agora já estava decidido, a coisa toda estava feita.
Não ia se importar mais com o que os outros iriam pensar, não senhor. Ninguém nunca se importou com o que ele pensava sobre tudo aquilo que acontecia ao seu redor. Ora, vejam só, ele estava incorporado a algo que não concordava. Quer violência maior que essa? Definitivamente, tudo aquilo que estava muito errado. Todos, todo mundo errado. E ninguém mais importava para ele. Nem a menina da blusa amarela, nem o vendedor de óculos que chega às 8 da manhã, monta sua barraquinha e fica ali, torrando no sol, até que a tarde venha e amenize um pouco o calor. E depois, somente quando a noite cai, ele desmonta tudo, desce novamente a passarela, pega a primeira das três conduções que o levam de volta para casa. Mas o que tinha ele com a vida do vendedor? Nada. Ele até poderia ser poupado. Mas, assim como todos os outros, nada percebeu. Depois de todo seu esforço. Por isso, merecia o que havia de vir.
Planejou tudo. Há tempos vinha com essa idéia fixa. Em um primeiro momento, quando a idéia surgiu em sua mente, pensou ser impossível. E era mesmo. Até decidir que podia fazer também isso ao seu jeito. Ia satisfazer unicamente aos seus desejos, pouco importava todo o resto. Armou, então, todo o cenário, e estava prestes a assistir, de camarote, o apoteótico desfecho.
Poucos segundos agora o distanciavam do grande momento.
Olhou o relógio uma última vez. 3, 2, 1.

Silêncio.

Parado, olhos fechados, um sorriso, inicialmente tímido, se insinuou em sua boca. Depois, tornou-se largo, sonoro, gargalhada. Suava mais, cada vez mais. Sentiu um esbarrão. Uma sombra na sua alegria. Mas ele não se deixaria abalar. 'Acalme-se. Deu tudo certo, sim. Do meu jeito'. Caminhou os primeiros passos ainda com os olhos fechados. Não olhou para trás.

3.11.05

Ela se casa hoje

Ela se casa hoje. As coisas vão acontecendo, as pessoas vão mudando, evoluindo, involuindo, se agrupando, trabalhando, tendo problemas, grandes alegrias e eu vejo tudo como espectadora. Talvez essas mudanças ocorram também comigo, mas não as percebo tão nitidamente. O que acontece é que algumas coisas marcam, chacoalham o nosso mundinho. Como ela estar se casando hoje.

Minha prima, amiga de infância. No passado dividiu essa 'categoria' com outra prima/amiga. Uma tinha ciúmes da outra. Eu, a prima querida por ambas. Posição confortável. Hoje, a outra continua prima, é evidente, e cada vez mais amiga. Mas ela, que se casa hoje, agora é só prima.

É alguns poucos anos mais velha. Dois ou três, não sei bem, quase sempre esquecidos. Uma das poucas questões em que a idade fez a diferença foi no assunto Papai Noel. Ela sabia que ele não existia, eu não. Não me contou porque eu ainda era muito nova. Simulou, por um par de anos, a mesma ansiedade que eu durante a espera pelo generoso velhinho.

Foram anos de férias passadas juntas. Brincadeiras inocentes, brincadeiras de mau-gosto, brincadeiras perigosas, de todos os tipos. Taca a maçã na cabeça do pedestre! Risos, se esconde atrás da cortina! Faz bagunça! Culpa da empregada! E tome bronca na mineira, recém chegada. Sentimento de culpa, sapatinho de cristal, brinde de alguma festa que guardei, para me desculpar. Investiga a vida alheia! 'Ele tem outra'! Telefonemas, telefonemas. 'Crianças, parem com isso. Sei onde você mora, conheço sua mãe, ela vai ficar sabendo.' Paramos. Brincar de casinha, de enterro, video-game, coreografias mil. Quebra isso, quebra aquilo, a culpa é sempre minha, estou na minha casa, você é visita, deixa comigo, eu assumo. Bronca. Teatrinho, risos, brigas. Briga briga. 'Isso não tá dando certo, elas estão brigando demais'. Noite chuvosa: 'Mãe, quero ir embora pra casa, vem me buscar'. E nesse ano as férias em comum acabaram mais cedo.

De repente, ela tinha uma religião. Uma religião que, para nossa relação, só serviu como combustível para novas discussões:
- Não, você não é cristã, só eu sou!
- Hein?!
- É isso mesmo, basta ler na bíblia, em Marcos, capítulo x, versículo y que ele diz...
- Mas cristão não é quem acredita em Cristo? Então como é que eu não sou?
- Porque você adora falsas imagens. Santos não existem! Você faz tudo errado!
- Ah, ok. Eu NÃO vou discutir com você...
Lavagem cerebral, foi o que pensei na época. Mas ela cresceu e a intolerância, ao que parece, não está mais lá.

Os anos passaram, as diferenças foram ficando mais evidentes, a amizade não resistiu. Não brigamos, não deixamos de nos gostar. Apenas nos deixamos. Os contatos cada vez mais raros, apenas em reuniões de família. Dia desses, em uma dessas ocasiões, passamos horas e horas juntas, o que já não fazíamos há muito tempo. Conversamos, soube um pouco do que se passa na vida dela. E ela da minha. Rimos, relembramos o passado. Ela disse que sempre se aproveitou do fato de ser mais velha. Colocava toda a culpa em mim, eu sempre estava errada, ela sempre fazia como quem sabia de tudo. É verdade. Era impressionante como ela sempre acabava tendo razão. A revelação, em meio a risos, tirou o peso de todas aquelas brigas do passado. Não que houvesse mágoa, mas foi bom saber que eu tinha alguma razão. Interessante. Mudou sensivelmente a forma com que agora vejo a nossa amizade.

Vou casar, disse ela. Eu já sabia. Me convidou para ser madrinha, de um jeito meio estabanado:
- Ah, quero que seja alguém da família, pode ser você ou sua irmã, tanto faz.
- A irmã não pode, tem trabalho no dia.
- Ah, então vai você mesmo.

Tudo bem, aceitei. Mal conheço o noivo, a relação dos dois, como se conheceram, as brigas, as afinidades, nada, nada disso. Mas estarei lá, como madrinha de uma união que praticamente desconheço. Gosto dela, sempre gostei, que sejam felizes.
E tudo isso acontece hoje. Hoje ela se casa. À partir disso ela será a prima casada. A prima mais velha, agora sim. As diferenças se aprofundarão. Em pouco tempo filhos, outros assuntos, envelhecimento, a infância cada vez mais distante. O tempo passa.
A brincadeira de casinha, agora, será diária.